“...
a imaginação, embora seguindo outros caminhos que não os do conhecimento
científico, pode coexistir com esse último, e até coadjuvá-lo, chegando
mesmo a representar para o cientista um momento necessário na formulação de
suas hipóteses.” (Italo Calvino)
Este estudo constitui parte de nossa pesquisa de doutorado em Lingüística pela UNICAMP. Tomamos como ponto de partida dados gerados pelo Núcleo de Avaliação e Pesquisa Educacional da UFPE (NAPE-UFPE), onde se desenvolve um projeto intermunicipal de avaliação de redes públicas de ensino. Analisaremos, especificamente, através do paradigma indiciário, alguns resultados de um teste aplicado para avaliar o rendimento escolar de alunos da 5a série do ensino fundamental na área de língua portuguesa. A referida avaliação foi realizada no ano de 1997, no município de Recife (PE). Faremos uma leitura qualitativa de dados quantitativos, problematizando alguns desempenhos dos alunos. Isso porque, em determinadas ocasiões, as respostas encontradas eram incorretas ou inesperadas, mas, segundo nosso juízo, resultavam de modos muito peculiares de perceber o que fora perguntado ou de formular soluções para certas tarefas propostas. A questão principal que vai nos ocupar aqui, portanto, é o fato de que números e estatísticas, se por um lado traduzem tendências e permitem posicionar alunos e instituições de ensino numa escala, por outro lado pouco ou nada dizem da relação que os alunos estabelecem, no interior da escola, com a linguagem enquanto objeto de conhecimento. Eis a razão pela qual vamos analisá-los qualitativamente, no que eles têm de singular, buscando explicá-los como produtos de práticas discursivas.
2.
BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
A
pesquisa qualitativa foi e vem sendo largamente praticada por um certo ramo da
sociologia, preocupada não tanto em quantificar fatos e fenômenos, mas em
explicar os meandros das relações sociais, considerando que a ação humana
depende estreitamente dos significados que lhe são atribuídos pelos atores
sociais. O objeto das ciências sociais não se revela apenas nos números, nem
tampouco se iguala a sua própria aparência, daí a necessidade de que os dados
qualitativos sejam abordados a partir de referenciais de coleta e interpretação
de outra natureza. Numa abordagem qualitativa, o pesquisador coloca interrogações
que vão sendo discutidas durante o próprio curso da investigação. Ele
formula e reformula hipóteses, tentando compreender as mediações e correlações
entre os múltiplos objetos de reflexão e análise. Assim, as hipóteses deixam
de ter um papel comprobatório, para servir de balizas no confronto com a
realidade estudada.
Duarte
(1998) informa que a seleção de dados pertinentes é uma característica básica
da pesquisa qualitativa e que seu valor não reside neles mesmos, mas nos
fecundos resultados a que podem levar. Por outro lado, o rigor de uma pesquisa
dessa natureza não se mede apenas por comprovações estatísticas, mas
justamente pela amplitude e pertinência das explicações e teorias, ainda que
estas não sejam definitivas e generalizáveis. Para Luna (2000), numa pesquisa
de cunho qualitativo, a escolha da técnica de análise tem a ver com a formulação
do problema a ser investigado; assim, a teoria deve tanto sugerir perguntas,
como indicar possibilidades de interpretação, servindo de referencial para os
resultados que vão sendo observados. Minayo (1994, 2000) diz que a pesquisa
qualitativa responde a questões particulares, enfoca um nível de realidade que
não pode ser quantificado e trabalha com um universo de múltiplos
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes.
Considerando
a não-transparência e a não-evidência da realidade, a pesquisa qualitativa
deve penetrar o interior de suas bordas, o que demanda do pesquisador abertura e
flexibilidade para novas formulações, bem como a mobilização de
conhecimentos distintos integrados. De outra parte, no âmbito da pesquisa
qualitativa, não se vê na subjetividade obstáculo à construção de
conhecimentos científicos; antes, nesse tipo de abordagem, considera-se a
subjetividade parte integrante da singularidade do fenômeno social (Minayo,
2000).
Uma
pesquisadora que vem dedicando muitas de suas reflexões à investigação
qualitativa em educação é André. Em “A pesquisa no cotidiano escolar”
(2000), a autora salienta que, numa abordagem qualitativa, a teoria vai sendo
construída e reconstruída no próprio processo de pesquisa, o mesmo se dando
com as opções metodológicas. A análise ocorre paralelamente à observação,
na medida em que o pesquisador decide sobre quais aspectos devem ser explorados
e quais devem ser abandonados. Num trabalho sobre a análise de dados
qualitativos (1983), André diz que estes nos permitem apreender o caráter
complexo e multidimensional dos fenômenos educacionais, além de prestarem-se a
captar os diferentes significados das experiências vividas e auxiliarem na
compreensão das relações entre os indivíduos, seus contextos e ações. Uma
marca importante dos dados qualitativos é também o fato de se constituírem em
construtos válidos para a investigação de fenômenos de difícil quantificação.
Nesse estudo, André ainda se refere a um constante transitar do pesquisador
entre a realidade investigada e a teoria, num processo contínuo de inferências
sobre o que os dados significam ou podem vir a significar.[1]
Em
parceria com Lüdke, André escreveu uma obra de referência sobre a pesquisa
qualitativa (1986). As autoras começam o trabalho mostrando a insuficiência da
abordagem analítica experimental, pois, no caso de muitos fenômenos
educacionais, é difícil isolar as variáveis envolvidas e apontar com segurança
quais são as responsáveis por um determinado efeito. Com a pesquisa
experimental, corre-se o risco de submeter a complexa realidade a um esquema
simplificador de análise, sacrificando o conhecimento do fenômeno em favor da
aplicação rigorosa de um esquema analítico. Na verdade, o fenômeno
educacional situa-se num contexto sócio-histórico mais amplo, sofrendo, por
isso, uma série de determinações. Assim, ao pesquisador interessa menos
encontrar evidências que comprovem hipóteses pré-definidas e mais formar e
consolidar abstrações a partir da inspeção dos dados. Isso significa que o
pesquisador, interrogando os dados, constrói novos conhecimentos sobre o fato
pesquisado, os quais irão se somar à teoria já acumulada e conhecida.
O
fato de não haver hipóteses prévias de trabalho não significa que não haja
um quadro teórico de referência que oriente a coleta e a análise dos dados. O
procedimento do pesquisador na abordagem qualitativa é um pouco diferente:
atento à multiplicidade de dimensões de uma determinada situação ou
problema, e após a análise dos dados, ele lança possibilidades de explicação
da realidade, tentando encontrar princípios subjacentes ao fenômeno estudado e
situar as suas descobertas num contexto mais amplo. A diversidade de pontos de
vista que pode decorrer desse procedimento não é vista como limitação.
Considera-se que a exigência de consenso é típica dos esquemas clássicos de
pesquisa e, nesse sentido, uma possível categorização dos dados não esgota a
análise – é preciso, depois dela, fazer um esforço de abstração,
ultrapassar os dados em si mesmos, tentar estabelecer conexões e relações que
tornem possível a proposição de novas explicações e interpretações do
fato estudado.
Cruz Neto (1994) afirma que
uma pesquisa de cunho qualitativo não se restringe à utilização de
instrumentos apurados de coleta de informações para dar conta de seus
objetivos. Para além dos dados acumulados, o processo de pesquisa deve levar à
reformulação dos caminhos investigativos e, nessa dinâmica, podemo-nos tornar
agentes de mediação entre a análise e a produção de informações. Gomes
(1994) considera que a análise e a interpretação das informações coletadas
estão contidas num mesmo movimento, o de olhar atentamente para os dados da
pesquisa. Para ele, é importante articular as conclusões que vão surgindo dos
dados concretos com conhecimentos mais amplos e abstratos. Diz ainda o autor que
o produto final da análise deve ser sempre encarado de forma provisória e
aproximativa.
A provisoriedade dos resultados de uma pesquisa também aparece nas
considerações de Alves (2000), para quem o cientista é um “caçador do
invisível”. Alves afirma que os mesmos fatos podem adquirir sentidos
totalmente diferentes, dependendo do contexto explicativo em que são colocados.
O que o cientista deve objetivar não é um rol de fatos e resultados, mas sua
integração num esquema teórico explicativo. Esse percurso também está
destacado em Certeau (1999). Segundo ele, as práticas de pesquisa, volta e
meia, exacerbam e desencaminham nossas lógicas, mas o que parece importante é
o trabalho de ultrapassagem operado pela insinuação do ordinário em campos
científicos constituídos; o caminho a percorrer seria, pois, o de reconduzir
as práticas e linguagens científicas para a vida cotidiana, ainda que esse
retorno implique o paradoxo de representar um exílio em relação às
disciplinas científicas, cujo rigor se mede pela estrita definição de seus
limites.
Cavalcanti e Moita Lopes (1991) apontam como características da pesquisa
qualitativa: a) ser uma pesquisa eminentemente exploratória; b) não exigir hipóteses
prévias nem categorias rígidas de análise; c) permitir ao pesquisador tomar
decisões ao longo do estudo; d) possibilitar uma teorização calcada nos
dados; e) preocupar-se com o particular. Mason (1997) destaca, na pesquisa
qualitativa, o seu poder interpretativo, o emprego de métodos flexíveis e sensíveis
ao contexto, e o tratamento dos fenômenos, ao mesmo tempo, em sua complexidade
e detalhe. Já Monteiro (1991) chama atenção para os limites das pesquisas
restritas a uma simples descrição de situações ou avaliação de rendimento
escolar, e considera como aspectos importantes da pesquisa qualitativa a
interpretação de dados predominantemente descritivos, a supremacia do processo
sobre o produto e a atenção especial conferida aos significados dos processos
sociais. Segundo Marques (1997), as opções metodológicas no âmbito da
investigação qualitativa não constituem um princípio em si, mas são
fortemente afetadas pelo tipo de problema que o pesquisador se dispõe a
enfrentar. Desse modo, a questão fundamental não é o emprego deste ou daquele
método ou a consideração deste ou daquele dado, mas, sim, quais problemas se
colocam como desafio ao pesquisador. A decisão sobre um método ou técnica
depende, portanto, das questões primeiras da pesquisa, da natureza mesma do
problema investigado.
Uma discussão necessária no quadro da pesquisa qualitativa é aquela
relativa ao valor do dado quantitativo nesse tipo de empreendimento científico,
especialmente quando se trata – como é o nosso caso – de investigação
sobre avaliação educacional. Indursky (1990), em pesquisa sobre a ocorrência
de estruturas passivas no documento que ficou conhecido como Relatório Pinotti,[2]
afirma que, nos estudos do discurso, não são apenas os dados predominantes que
devem ser analisados. Ela acha que, ao contrário, dados numericamente pouco
expressivos não devem ser desqualificados, uma vez que podem produzir efeitos
de sentido significativos no funcionamento do discurso em análise. O que parece
relevante é que as análises quantitativas ou qualitativas não se justificam
por si mesmas. Elas adquirem dimensão e sentido diferentes em função do
quadro em que se inserem ou do paradigma que as prioriza, ou não, em relação
a outros elementos da pesquisa (Sánchez Gamboa, 2000). De fato, há problemas e
temas para cujo tratamento os métodos quantitativos são úteis e até mesmo
indispensáveis (Luna, 2000), embora, em pesquisa qualitativa, não haja, em
princípio, grande preocupação com amostragens e quantificações. Triviños
(1987), ao se reportar aos dados estatísticos, afirma que é possível
aproveitar as informações que estes traduzem, no sentido de realizar
interpretações mais amplas e abrangentes dos fatos em discussão. Talvez
porque, como bem salientam Laville e Dionne (1999), o que é significativo no
plano estatístico não o é necessariamente nos planos psicológico e social.
Certeau (1999) tece considerações acerca da estatística enquanto técnica
de pesquisa. Diz o autor que a força dos cálculos estatísticos repousa em sua
capacidade de dividir a realidade, mas é precisamente essa fragmentação analítica
que pode nos fazer perder de vista aquilo que os dados supostamente representam.
A estatística se vale dos procedimentos de classificação, cálculo e tabulação
de unidades, fazendo-o em função de categorias e taxionomias que lhe são próprias.
Assim, a enquete estatística só nos permite encontrar o homogêneo. No caso de
Certeau, que estudou particularmente as astúcias e táticas do consumidor, a
estatística não daria conta do fraseado devido à bricolagem, da inventividade
artesanal, da discursividade que combina os elementos do cotidiano. A análise
estritamente quantitativa deixaria fora de seu campo a “proliferação das
histórias” e as “operações heterogêneas” que compõem os patchworks
da vida diária; esse tipo de análise não capta o “movimento sub-reptício e
astucioso” do “fazer com”, porque contabiliza o que é usado, mas não as
maneiras de utilizar os objetos de consumo.
Santos
(2001) critica a idéia subjacente aos modelos matemáticos de análise de que
conhecer equivale a quantificar. Para o autor, dentro do paradigma clássico, o
rigor científico de uma análise era aferido pelo rigor das medições mesmas.
Esse modo de proceder terminou por desqualificar aspectos intrínsecos do objeto
de estudo que, eventualmente, poderiam ter um importante valor analítico. Em
lugar disso, imperam as quantidades em que o objeto se possa traduzir, de modo
que o que não era quantificável passou a ser encarado como cientificamente
irrelevante.
Modernamente,
depois de um período em que as abordagens quantitativa e qualitativa eram
vistas de forma dicotômica, muitos epistemólogos e pesquisadores vêm propondo
que as duas se articulem em benefício das análises daí resultantes. Gonsalves
(2001) caracteriza a abordagem quantitativa como aquela em que o pesquisador
procura explicar as causas do fenômeno estudado, por meio de medidas objetivas,
estatísticas e testes de hipóteses. Já a abordagem qualitativa teria como
marca a compreensão e interpretação dos fenômenos, considerando os
significados que os sujeitos atribuem às suas práticas. A autora sugere que o
dualismo seja superado e que cada uma dessas abordagens seja empregada em níveis
diferentes de profundidade, conforme a natureza dos dados em jogo. O mesmo propõe
Thiollent (1984), que julga serem as preocupações muito diversificadas no
campo da metodologia da pesquisa social, a ponto de não se reduzirem a uma
oposição entre quantidade e qualidade. Thiollent acha que uma articulação
entre ambas seria a postura científica mais satisfatória, mas salienta que,
dependendo do assunto ou da abrangência da observação, certas pesquisas
seguem sendo principalmente qualitativas ou quantitativas. Thiollent também
acredita que qualquer fato social ou educacional apresenta aspectos que podemos
descrever e estudar em termos ora quantitativos ora qualitativos.
Marques
(1997) alude a Florestan Fernandes, lembrando que, nas ciências humanas, que
lidam com fenômenos cuja interpretação exata nem sempre depende da quantificação,
tem sido adequado defender o ponto de vista de que ambas as modalidades de
explicação – a quantitativa e a qualitativa – são necessárias e devem
igualmente ser desenvolvidas dentro de seus limites. Pondera ainda o autor que,
se, por um lado, a abordagem quantitativa é parcial e seus dados podem ser
pobres de significação, por outro lado, os dados quantitativos podem fornecer
informações importantes para a análise e a interpretação de uma certa
realidade, pois permitem sugerir hipóteses qualitativas acerca de fatos
quantitativamente indicados. No tocante à avaliação educacional propriamente
dita, Marques crê que as pesquisas quantitativas “colhem um instantâneo”
da realidade, focam apenas o final da linha (os resultados); contudo, enquanto
dados globais e numa perspectiva dialética, em que quantidade e qualidade se
interpenetram, os resultados podem perfeitamente nos conduzir para o interior
das escolas, no sentido de buscar novas possibilidades de interpretação e
explicação para eles.
Marcuschi
(2001) propõe abandonar a dicotomia quantidade x qualidade, em favor da noção
de continuum interativo. O autor considera que a construção de
categorias dicotômicas, típica da primeira metade do século XX, foi
prejudicial às ciências que se voltavam para a análise de eventos e situações
de natureza processual, como é o caso de certos ramos da lingüística. Esse
fator, ao lado de outros, conduziu a uma guinada, no final do mesmo século, da
quantidade para a qualidade, da forma para a função, da unidade analítica
para o indivíduo, do experimento controlado para a observação de dados autênticos,
da significação imanente para a contextualização. Uma noção importante,
segundo Marcuschi, é a de que os fatos da língua são uma construção social
e não um dado objetivo, independente e extrínseco ao indivíduo. Os dados,
antes vistos como naturais e livres da subjetividade do analista, hoje são
encarados como resultantes do ponto de vista e do interesse investigativo, sem
que isso seja prejudicial para a investigação. Marcuschi aposta na postura
indagativa como fundadora do conhecimento e afirma que o que torna uma
metodologia qualitativa ou quantitativa não é exatamente o método de trabalho
seguido, e sim a natureza do resultado buscado. Quantidade e qualidade não se
opõem, mas se complementam, a depender do que está em jogo na pesquisa. Assim,
em certas condições de trabalho, como no caso da interação verbal, acaba
sendo quase que inevitável a preferência pela metodologia qualitativa. Outra
questão levantada pelo autor é que não é importante a quantidade de dados
coletados, uma vez que uma observação singular ou um dado privilegiado pode
ser suficiente para produzir um grande número de observações teóricas
produtivas sobre o fenômeno analisado.
Possíveis
articulações entre os paradigmas quantitativo e qualitativo de pesquisa também
foram apontadas por Santos Filho (2001): se, de um lado, os dados quantitativos
permitem discriminações mais refinadas e sumários econômicos que facilitam a
análise e diminuem a tendência à falibilidade, de outro, qualquer esquema
conceitual, teoria ou hipótese pressupõe crenças qualitativas substantivas,
que têm importante papel na fase de inferências ou conclusões científicas da
pesquisa. Para Sánchez Gamboa (2001 a e b), é preciso inserir a reflexão
sobre os métodos e suas relações com as técnicas no contexto das
epistemologias que os fundam. O autor afirma que a escolha de uma técnica de
coleta, registro e tratamento dos dados está ligada a pressupostos com relação
às concepções de método e de ciência, de sujeito e de objeto, e às visões
de mundo implícitas em todo processo cognitivo.
O
enfoque qualitativo se vale de instrumentos e técnicas que permitam a descrição
densa de um fato, a recuperação do sentido, com base nas manifestações do
fenômeno e na recuperação dos contextos de interpretação. Nesse caso, os
dados quantitativos funcionariam como indicadores que precisam ser interpretados
à luz de elementos qualitativos e intersubjetivos. De todo modo, conforme
Vianna (2000), em qualquer estudo qualitativo (etnográfico, naturalista,
fenomenológico, hermenêutico ou holístico), há lugar para a enumeração e o
reconhecimento de diferenças de quantidade. De outra parte, quando se realiza
um estudo estatístico, tipo survey, são requeridas descrições e
interpretações do fenômeno em estudo. Não se pode colocar a questão em
termos de uma oposição estrita entre quantitativo e qualitativo. Vianna
explica o modo de operação da avaliação quantitativa e destaca a eliminação,
nesse tipo de abordagem, do dado situacional, em benefício da busca de grandes
relações explicativas, derivadas de dados quantitativos que possam levar à
generalização. No entanto, não se pode deixar de considerar que uma situação
particular pode ser mais importante do ponto de vista científico e educacional
do que dados gerais que conduzam à construção de princípios e teorias. No
caso, a abordagem qualitativa se interessa pela singularidade do caso ou pela
variedade de percepções; isso não significa que não haja preocupação com a
generalização, apenas essa não é uma questão
central para
o pesquisador.
Saul (2000) estabelece, a partir de outros estudos, algumas diferenças
entre as práticas de avaliação quantitativa e qualitativa. Vale salientar
aqui que a base do crescimento e consolidação da avaliação qualitativa foi o
reconhecimento de que os testes padronizados de rendimento, largamente
utilizados nas fases iniciais dos processos avaliativos, não forneciam toda a
informação necessária para compreender o que os professores ensinam e os
alunos aprendem. No âmbito da discussão sobre as marcas da avaliação
qualitativa, a autora remete-nos a Lawton, estudioso que defende a necessidade
de a avaliação referir-se não somente ao grau em que o aluno aprende um
conjunto de habilidades ou um tipo de conhecimento; segundo Lawton, a avaliação
deve responder a questões de justificativa (Por que os alunos aprendem x?), bem
como a questões que buscam detectar efeitos de aprendizagem não pretendidos (O
que mais os alunos aprenderam? O que deixaram de aprender?).
Tais
questões são particularmente importantes em nossa pesquisa, sobretudo porque
focalizamos as respostas surpreendentes, as escritas excedentes, os intervalos
de sentido, os quais não serão meramente cotejados com uma matriz fechada de
objetivos de aprendizagem previamente definidos. Serão, sim, problematizados,
interrogados, confrontados, na busca de explicações plausíveis para o
funcionamento do discurso no interior da escola.
Seriam
ainda marcas da avaliação qualitativa, para Saul: a) a substituição, na análise
de significados e processos, das generalizações estatísticas por interpretações
do particular e, eventualmente, dos acontecimentos que não se repetem; b) a
necessidade de uma metodologia sensível às diferenças, aos imprevistos, à
mudança, às manifestações observáveis e aos significados latentes; c) a
manutenção da crença no poder explicativo dos dados quantitativos, dos
resultados e produtos da avaliação, os quais podem vir a ser preciosos e
importantes, mesmo nas investigações que enfatizam a descrição e a
interpretação, o singular e o contexto.
Feitas
essas considerações, partamos para uma rápida discussão sobre o paradigma
indiciário, aporte metodológico de nossa investigação.
O
paradigma indiciário pode ser considerado um tipo específico de pesquisa
qualitativa. A seguir, ele será explicitado e serão mostradas as razões pelas
quais ele foi adotado como metodologia de análise dos nossos dados. Lüdke e
André (1986), discutindo o estudo de caso como estratégia de investigação
qualitativa, dizem que um aspecto supostamente trivial pode ser essencial para
uma melhor compreensão do tema da pesquisa. Quando se trata de um estudo de
caso, o pesquisador preocupa-se em compreender uma instância ou manifestação
singular do fenômeno; o objeto de estudo é tratado como único, uma representação
singular da realidade, reconhecida como multidimensional e historicamente
situada. Quanto ao fato de o estudo de caso ser ou não típico –
empiricamente representativo de uma população determinada –, esta é uma
questão inadequada, já que cada caso é tratado como tendo um valor intrínseco
em si mesmo.
A
singularidade e a eventual importância de certos dados também foram objeto de
discussão de André (1983). É possível, conforme a autora, que alguns dados
de pesquisa contenham aspectos, observações, comentários e características
únicas, mas extremamente relevantes para uma apreensão mais abrangente do fenômeno
estudado. É possível, ainda, encontrar nos dados mensagens não-intencionais,
implícitas e contraditórias que, embora únicas, revelam dimensões
importantes da situação. Diante dessas possibilidades, André põe em destaque
a importância, ao lado do quadro teórico de referência, da subjetividade e da
intuição do pesquisador.[3]
O
paradigma indiciário foi proposto pelo historiador italiano Carlo Ginzburg. Ele
partiu da idéia de que a história tradicional ocultou, deixou de lado ou
simplesmente ignorou uma série de detalhes que, ainda que considerados casuais
ou de pequena importância, eram relevantes para a explicação dos fatos históricos.
No texto Sinais – raízes de um paradigma indiciário, da coletânea Mitos,
emblemas e sinais – morfologia e história, Ginzburg (1999) ressalta a
pertinência de se trabalhar em história com um novo método interpretativo
centrado nos resíduos, nos dados marginais que possam, eventualmente, ser
considerados reveladores. O historiador poderia, nessa perspectiva, operar com
pistas, sintomas e indícios, e não apenas com fatos explícitos. Essas pistas
permitiriam até captar aspectos da realidade, inatingíveis através das formas
clássicas de investigação.
O
modelo indiciário se apóia na idéia de que, sendo a realidade opaca, não-transparente,
alguns de seus sinais permitiriam “decifrá-la”, pois indícios mínimos
podem ser reveladores de fenômenos mais gerais. Tal princípio foi sendo
adotado em vários campos do conhecimento, modelando significativamente as ciências
humanas. Estas, no entanto, não se livraram do dilema entre um estatuto científico
frágil para chegar a resultados relevantes e um estatuto científico forte para
chegar a resultados de pouca relevância, até se concluir que o rigor científico
do paradigma galileano era indesejável para as disciplinas que elegiam como seu
objeto a experiência cotidiana ou situações em que a unicidade e o caráter
insubstituível dos dados eram de extrema importância para a pesquisa. Assim,
Ginzburg usa a expressão “rigor flexível” para caracterizar o paradigma
indiciário, no interior do qual não se trabalha com regras explícitas,
formalizadas ou preexistentes, mas com o faro, o golpe de vista, a intuição.
Pimentel
(1998) utilizou o paradigma indiciário em uma investigação sobre a produção
de textos na escola. A autora partiu da hipótese de que elementos constitutivos
da experiência anterior dos alunos com a linguagem são reconstruídos nos
textos que eles escrevem; procurou, então, verificar nesses textos indícios de
leituras anteriores, realizadas dentro e fora da escola. Para tanto, valorizou
detalhes, elementos aparentemente residuais que poderiam revelar aspectos
importantes da trajetória dos alunos até chegar à versão final do texto,
trajetória essa marcada pelas leituras que eles haviam feito. Nessa pesquisa,
foi reconhecida a relevância de dados singulares, episódicos e residuais,
pois, através deles, poder-se-ia chegar ao que não era aparente. O indício
constitui-se como um dado à luz de hipóteses iniciais e o pesquisador se põe
num movimento entre a hipótese e os dados, com vistas à construção de
explicações para os fenômenos observados. Considerando, então, que o aluno
deixa pistas na escrita, Pimentel procurou, a partir de sua hipótese,
interpretar essas pistas, identificando nelas marcas da relação do sujeito com
a linguagem em geral e com a leitura em particular.
Utilizando-se
também do paradigma indiciário, Duarte (1998) fez um estudo sobre a produção
textual de vestibulandos. No caso, tratava-se de candidatos que deveriam
produzir uma redação a partir da leitura de pequenos trechos relativos ao
assunto a ser desenvolvido, sendo que tais trechos expressavam diferentes pontos
de vista sobre a questão. A hipótese de Duarte era a de que as redações
trariam marcas de intertextualidade reveladoras dos diferentes procedimentos de
leitura empregados pelos vestibulandos. Também aqui temos um trabalho em que o
olhar do pesquisador voltou-se para o dado singular, para o detalhe
eventualmente significativo, interpretado por meio de procedimento abdutivo de
investigação: parte-se de uma base teórica em direção aos dados, os quais
podem, por sua vez, levar a modificações na teoria e assim por diante. Duarte
esclarece que a abdução decorre da observação atenta dos dados, o que deve
ser seguido de uma seleção das melhores hipóteses dentre as várias que se
tomam como possíveis explicações para o que foi observado. A investigação
de Duarte deixa claro que o dado singular pode ser extremamente revelador de um
objeto tão complexo como é a linguagem. Articulando o paradigma indiciário
com uma concepção discursiva de linguagem, Duarte pôde encontrar explicações
consistentes para os diferentes tipos de leitura realizados pelos vestibulandos,
expressos em suas produções textuais.
A
respeito da singularidade de certas ocorrências encontradas quando se investiga
a relação sujeito-linguagem dentro da escola, diz Duarte:
Às
vezes, um dado singular não tem aparentemente uma explicação para sua ocorrência;
é idiossincrático, diferente e, muitas vezes, estranho. O trabalho do
analista será o de justificar sua ocorrência, buscando compreender os fenômenos
que estão por trás dele. Para isso, é importante que a explicitação dos
processos inerentes a esses fenômenos, ou seja, que a maneira como determinado
dado possa ter aparecido seja objeto de reflexão para o analista, cujo objetivo
é justamente tentar desvendar aquilo que é surpreendente em um dado singular.
(p. 62).
Abaurre,
Fiad e Mayrink-Sabinson empreenderam uma pesquisa integrada com base no
paradigma indiciário, cujos resultados apareceram compilados em Cenas de
aquisição da escrita – o sujeito e o trabalho com o texto (1997a). As
autoras esclarecem o que tomam por “dado singular”: trata-se daquele dado
que, efetivamente, é revelador do que se busca conhecer. Além disso, elas
discutem a validade da adoção do modelo indiciário para a análise de fatos
concernentes à relação sujeito-linguagem, em comparação com o paradigma
galileano, centrado na quantificação e na repetibilidade de resultados obtidos
em situações experimentais. A atenção das pesquisadoras recaiu sobre textos
produzidos em diferentes níveis de escolarização. Em todas as situações
pesquisadas, visava-se a esclarecer o processo geral através do qual se vai
continuamente constituindo e modificando a complexa relação entre o sujeito e
a linguagem, especialmente no interior da escola. As autoras argumentam que,
pelo fato de darem maior visibilidade a alguns aspectos desse processo, os dados
idiossincráticos e singulares podem contribuir para uma discussão mais
profunda da natureza da relação sujeito-linguagem no âmbito da própria
teoria da linguagem.
Nos
estudos específicos sobre a aquisição da escrita por crianças, Abaurre, Fiad
e Mayrink-Sabinson (1997b) assumem que os erros cometidos pelos aprendizes são,
na verdade, preciosos indícios de um processo em curso de aprendizagem da
representação escrita da linguagem. Nesse aspecto, as autoras dizem ter
procurado saber que fato singular, que aspecto de contexto, forma ou significação
lingüística (ou possível combinação desses fatores) pode ter adquirido
relevância para o sujeito, colocando-se como objeto de preocupação para ele
na busca de soluções para seus problemas epistemológicos, ainda que essas
soluções muitas vezes possam ser caracterizadas como episódicas e
circunstanciais. No trabalho (Re)escrita e estilo, pertencente à coletânea
em discussão, Fiad (1997) diz que, dentro do paradigma indiciário, dados
singulares e particulares que, em outra perspectiva teórica, seriam
considerados marginais podem vir a tornar-se reveladores e significativos.
Assim, o paradigma indiciário recupera a possibilidade de examinar pormenores e
marcas individuais presentes nas atividades de linguagem; permite lidar com
diferenças mais do que com semelhanças, com anormalidades mais do que com
normalidades.
Como
já havíamos mostrado, Ginzburg (1999) reivindica, para o paradigma indiciário,
outros critérios de rigor e cientificidade, compatíveis com situações de
pesquisa em que a unicidade dos dados é decisiva. Pensamos que esse é o caso
do nosso estudo, porque, além de cada ocorrência de linguagem ser única em si
mesma, tal fato parece ter mais força ainda quando se trata da resposta
divergente em relação às possibilidades previstas pelos elaboradores dos
instrumentos de avaliação de redes de ensino. Em nossa análise, pretendemos
apreciar essas manifestações singulares, essas escritas inesperadas e
desviantes, por acharmos que elas materializam algo das relações entre os
alunos, a língua, a escola e o processo de avaliação. Sem avançar na direção
dessa abertura epistemológica, não teríamos como dar conta das muitas
“bricolagens” dos alunos, identificadas em nosso trabalho de coleta de dados
e informações.
Passemos
agora à análise de alguns dados quantitativos e estatísticos, abstraídos do
teste descrito. Salientamos novamente que faremos uma leitura qualitativa dos números,
tomados aqui como indícios do processo ensino-aprendizagem, indicadores de tendências,
fonte de indagações teóricas, pistas para a explicação e a interpretação
dos muitos significados engendrados na prática educativa/avaliativa.
3.
ANÁLISE DE ALGUNS CASOS
No intuito de testar um maior número de conteúdos e habilidades, foram elaborados e aplicados três cadernos de questões, com estrutura similar. Cada um contém um texto principal e mais um ou dois de caráter complementar. Esse texto complementar, em geral, trata da mesma temática do texto principal, diferindo quanto ao gênero ou ao enfoque dado ao assunto. Cada caderno de teste tem vinte questões de respostas fechadas (do tipo múltipla-escolha, ou de completar lacunas) e uma questão de resposta aberta, que é a de produção de texto. Uma parte da equipe técnica do NAPE elabora, para cada caderno, e a partir de um mesmo texto principal, sessenta e três questões, que são pré-testadas. Após a aplicação do pré-teste, a equipe de elaboração se reúne com a equipe de crítica; nesse momento, as questões são analisadas quanto à relevância do conteúdo, habilidade ou competência exigidos, e recebem, depois disso, um tratamento estatístico em termos de poder de discriminação e grau de dificuldade. Após essa etapa, as 63 questões iniciais são eliminadas, mantidas ou reformuladas e, dentre elas, são escolhidas as 21 que comporão afinal o caderno de itens definitivo, conforme uma matriz de objetivos definidos para a avaliação da série em questão. A questão de produção de texto é apresentada no final do teste e guarda alguma relação com a temática dos demais textos da prova.
O
caderno 1 trazia como texto principal a crônica O cajueiro, de Rubem
Braga. O autor, já maduro, fala de um cajueiro que marcou sua infância e da
tristeza que sentiu ao saber, através da carta de uma irmã, que ele havia
tombado numa tarde de ventania. Para a resolução dos quesitos de número 16 a
20, os alunos deveriam tomar como base um texto complementar, intitulado O
meu pomar, de autoria de Cecília Meireles, no qual a autora fala do seu
desejo de ter um pomar, farto e sempre aberto para alimentar e abrigar quem quer
que seja. A questão 12 do caderno 1 era a seguinte:
a.
( )
espadas-de-são-jorge;
b.
( )
beijos;
c.
( )
tala;
d.
( )
saboneteira;
e.
( )
caramanchão.
O
índice de acerto da questão 12 pode ser considerado baixo (13,52%). O objetivo
era interpretar variação contextual de sentido e o aluno deveria marcar com um
X a palavra que não representava tipo de vegetal (resposta certa: caramanchão
(letra E), em oposição a espada-de-são-jorge, beijo, tala
e saboneteira). Talvez esse índice possa ser atribuído ao fato de que
as palavras oferecidas tenham representado dificuldade para os alunos, ou por
serem efetivamente desconhecidas como nomes de plantas, ou pelo fato de que a
sinonímia é tradicionalmente trabalhada fora de contexto, apenas com a exploração
da relação um para um entre palavras semanticamente equivalentes. De outra
parte, o quesito 20 do mesmo caderno apresentou um índice de acerto ainda mais
baixo: 6,15% (o menor percentual de todo o teste). Além da mesma explicação
apresentada acima, o que parece ter contribuído para a queda do percentual foi
que os alunos tinham que reler todo o texto e retirar dele uma frase em que a
palavra pé aparecesse com sentido diferente do que tem na expressão pé
de pinha (resposta certa: “... apoiar o pé e subir pelo cajueiro...”).
Verificamos, também, que ocorreu aqui um índice alto de respostas em branco
(25,2%), sugerindo que os alunos não tiveram tanta disposição de voltar ao
texto, ainda mais que se tratava da última questão do teste, quando eles já
deviam estar física e mentalmente cansados. Resultado muito diferente aparece
na resposta à questão 12 do caderno 2, que pedia que o aluno relacionasse duas
colunas, indicando os diferentes sentidos do verbo levar em diferentes
frases:
12)
Relacione as colunas, de acordo com os
sentidos que o verbo LEVAR apresenta em cada frase:
|
Os
resultados acima levariam a crer que os alunos apresentaram baixo desempenho no
quesito sinonímia/variação contextual de sentido. Entretanto, na questão 12
do caderno 2, os percentuais de acerto chegaram a 42,25% (acerto total) e 41,06%
(acerto parcial), índices que parecem apontar para a hipótese de que o sentido
das palavras é melhor percebido pelos aprendizes em frases e proposições
completas. É possível, também, que esse resultado se deva ao grau de
familiaridade dos alunos com a palavra testada. Ademais, é de se levar em conta
o fato de que a formulação da pergunta tem, certamente, um efeito sobre o
desempenho.
O caderno 2 trazia, como texto principal, um trecho do romance Música ao longe, de Érico Veríssimo, intitulado Travessura de Clarissa. Nesse trecho, Clarissa, já crescida, numa tarde de tédio, buscando o que fazer, recorda-se do dia em que fez uma travessura – violando regras da casa, entrou no sótão e comeu dos doces e pães que deveriam dar para uma semana e que era proibido pegar sem autorização; descoberta no dia seguinte pela mãe, Dona Clemência, Clarissa levou meia dúzia de palmadas. Nesse caderno, os alunos deveriam responder a uma questão sobre os personagens do texto principal. As passagens que deveriam ser tomadas como base para a resolução do quesito são as seguintes:
Clarissa
abre um livro para ler. Mas o silêncio é tão grande que, inquieta, ela
torna a pôr o volume na prateleira, ergue-se e vai até a janela, para ver um
pouco de vida.
Na
frente da farmácia está um homem metido num grosso sobretudo cor de chumbo.
Um cachorro magro atravessa a rua. A mulher do coletor aparece à janela. Um
rapaz de pés descalços entra na Panificadora (...)
De
repente pensou numa travessura. Mamãe guardava no sótão as suas latas de
doce, os seus bolinhos e os seus pães que deviam durar toda a semana. Era
proibido entrar lá. Quem entrava, dos pequenos, corria o risco de levar
palmadas no lugar de costume (...)
Comeu
muito. Desceu cheia de medo. No outro dia D. Clemência descobriu a violação,
e Clarissa levou meia dúzia de palmadas.
Abaixo, transcrevemos a questão apresentada aos alunos no teste:
3)
Identifique os personagens do texto que correspondem às
seguintes indicações: (1)
A mãe de Clarissa: _________________________ (2)
A figura feminina vista da janela: ________________________ (3)
As figuras masculinas vistas da janela: a.
____________________________ b.
____________________________ |
A
taxa de acerto nesse quesito foi de apenas 5,53%. Já nos cadernos 1 e 3,
figuravam questões com o mesmo objetivo e os índices de acerto foram bastante
superiores, em comparação com o caderno 2. No primeiro caso, a taxa foi de
34,32%; já no caso do caderno 3, em que esse objetivo foi avaliado em duas
questões diferentes, os índices foram de 42,19% e 16,65%. Como explicar, então,
o baixo desempenho dos alunos no caderno 2? Nossa hipótese é que os alunos
tiveram uma certa dificuldade de identificar/caracterizar os personagens do
texto de Veríssimo, primeiramente porque, de acordo com a elaboração da questão,
eles eram quatro, agrupados em categorias; em segundo lugar, e sobretudo,
porque, excetuando-se a mãe da personagem principal (D. Clemência), que tem um
papel importante na narrativa, os outros eram personagens insignificantes, gente
que passava na rua e que não participa diretamente da trama (um homem de
sobretudo, um rapaz de pés descalços e a mulher do coletor); uma possível
prova disso é o alto índice de acerto parcial (45,18%), devido ao fato de
muitos alunos terem apenas citado D. Clemência; observe-se, inclusive, que os
outros três personagens não têm nome. Vale salientar, ainda, que alguns
alunos chegaram, quando da elaboração da resposta, a citar o cachorro que
atravessava a rua, fazendo-o às vezes fora das pautas oferecidas no teste.
O
texto principal do caderno 3 era a fábula “A formiga boa”, de Monteiro
Lobato. Um detalhe importante sobre essa fábula é que, nela, o autor desmonta,
de certa forma, a versão mais conhecida da história. Ao final da narrativa,
quando a cigarra procura a formiga atrás de comida e abrigo, em vez de ouvir um
sermão em defesa do trabalho e contra a preguiça, ela é recebida com carinho
no formigueiro: as formigas estavam agradecidas por terem passado o verão
trabalhando ao som de uma agradável voz. No desfecho da trama, a cigarra sara
da tosse que a acometera e volta a ser uma alegre cantora de dias ensolarados.
No caderno 1, os alunos tinham que ter respondido a uma pergunta sobre concordância
nominal (questão 15), transcrita abaixo:
NUMERE
a segunda
coluna de acordo com
a primeira,
observando
o sentido
das palavras e a concordância do adjetivo com o substantivo.
|
Nessa questão, esperava-se que o aluno estabelecesse uma relação de concordância nominal, relacionando as duas colunas. Assim, na primeira, vinham três sujeitos, que deveriam ser juntados a quatro predicados dispostos na segunda coluna, observando-se o sentido e as flexões de gênero e número dos termos em questão. A taxa de acerto foi baixa (8,91%), a segunda menor de todo o teste. Vários fatores podem explicar esse desempenho, entre eles: a) a concordância (nominal e verbal) não é um conteúdo sistemática e intensamente trabalhado ao nível da 5a série; b) no caso, além das flexões de gênero e número, o aluno deveria estar atento ao sentido das frases; c) a própria formulação da questão é mais complexa, pois se solicitava do aluno que estabelecesse relações entre colunas, as quais não estavam dispostas numa relação um para um. Mas o que queremos destacar aqui é que o percentual de acerto do quesito sobre concordância nominal caiu para menos de metade no caderno 3 (4,22%). E aqui temos um fenômeno bastante curioso: o enunciado do quesito 17 pedia que o estudante reescrevesse a frase apresentada, substituindo a palavra sublinhada pela que estava entre parênteses, fazendo as modificações necessárias. A frase era a seguinte:
“–
Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama...”
(pedintes).
____________________________________________________________________________
O que nos pareceu interessante foi a forma como os alunos responderam a essa questão. Em vez de substituir mendiga por pedintes, aplicando o plural em as, tristes e sujas, como era esperado, os alunos, guiados pelo sentido do texto gerador da prova, escreveram pedinte, no singular, no lugar de mendiga, considerando que fosse essa a modificação a ser feita, conforme indicava o enunciado. A mendiga em questão era a cigarra que, no inverno, fora pedir abrigo e comida na porta de um formigueiro. Na compreensão dos alunos, provavelmente não faria sentido a troca de mendiga, no singular, por pedintes, no plural, já que a cigarra da fábula lida era uma só. Acrescente-se a tudo isso mais um aspecto: o plural a ser aplicado no objeto direto da frase só faria sentido se também incidisse sobre o verbo querer. O enunciado completo e adequado, uma vez que a formiga tivesse examinado as supostas pedintes de alto a baixo, deveria ser o seguinte: – Que querem? – perguntou, examinando as tristes pedintes sujas de lama... Indício dessa nossa hipótese é o alto percentual de erro (68,87%), obtido na medida em que não foram consideradas as respostas nas quais não aparecesse a substituição e a flexão pedidas (acerto parcial = 0).[4]
O fenômeno aqui descrito é um emblema do funcionamento do processo discursivo em geral e na escola, em particular. Os sujeitos propõem e constroem sentidos, trabalhando com e sobre a linguagem. Conforme Duarte (1998), cada aluno é um sujeito de linguagem e se constitui em um contexto social, sob a influência de certas condições de produção. Na situação sob exame, as respostas são pistas sobre a forma como os alunos se relacionam com a língua no interior da escola: como, usualmente, precisam se remeter ao texto para responder a questões de compreensão/interpretação, eles também resgataram o sentido do texto ao responder à questão 17 do caderno 3, associando mendiga, pedinte e cigarra; não lhes pareceu natural a frase “– Que quer? – perguntou, examinando as tristes pedintes sujas de lama...”, uma vez que a mendiga/pedinte era, na verdade, a cigarra, referida, ao longo de todo o texto de Lobato, sempre no singular. O mesmo não acontece com o item formiga, que ora aparece no plural, numa referência aos membros do formigueiro, ora aparece no singular, quando remete à formiga individualizada que recebe a cigarra na porta do formigueiro. Além do mais, o plural do sintagma nominal sem o correspondente no sintagma verbal violaria a relação gramatical e semântica esperada pelo falante (o aluno, no caso). Temos aqui as “práticas de significação”, as “operações produtoras” a que alude Certeau (1995).
As
diferentes possibilidades de leitura dos números aqui apresentados têm relação
com aquilo que disse Certeau (1999) acerca dos consumidores, suas astúcias e táticas:
... produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas selvas da racionalidade funcionalista, os consumidores (...) traçam ‘trajetórias indeterminadas’, aparentemente desprovidas de sentido porque não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas organizadoras de sistemas. (p. 97).
Certeau
acha que essas trilhas, embora tenham como material os vocabulários de cada língua
recebida (por exemplo, o da TV ou do supermercado, ou da estrutura urbanística),
continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam astúcias
de interesses e desejos diferentes: “elas circulam, vão e vêm, saem da linha
e derivam num relevo imposto, ondulações espumantes de um mar que se insinua
entre os rochedos e os dédalos de uma ordem estabelecida.” (p. 97). No capítulo
“Indeterminadas”, Certeau sustenta que a simbolização é indissociável do
fracasso. A falha da razão seria, para ele, o “ponto cego que a faz ter
acesso a uma outra dimensão, a de um pensamento, que se articula
com o diferente como sua inapreensível necessidade” (p. 311). Assim, se as práticas
cotidianas são dispersas, fundadas na sua relação com o ocasional, eliminar o
imprevisto como acidente ilegítimo e perturbador da racionalidade é
“interdizer a possibilidade de uma prática viva e mítica”. Atribuir
meramente os rótulos de certo e errado àquilo que os alunos escrevem,
quantificar suas respostas pelo cotejo com uma chave de correção pré-definida
significa realizar uma avaliação incompatível com a concepção de língua
enquanto discurso, negar a indeterminação e a falibilidade do simbólico,
substituir as “incongruências do outro” pela “transparente organicidade
de uma inteligibilidade científica”.
Os resultados que obtivemos até agora vêm indicando que textos e formulações que, em princípio, poderiam parecer uma resposta descabida ao que fora solicitado nos enunciados das questões se explicam pelo modo de inserção do sujeito-aluno na dinâmica do discurso escolar. Isso sugere que o processo de avaliação da aprendizagem, muito mais do que simples verificação quantitativa de rendimento, configura-se como um processo discursivo de alta complexidade, a exigir dos educadores a mobilização de novos mecanismos de escuta/interpretação.
ABAURRE,
M. B. M. FIAD, R. S. e MAYRINK-SABINSON, M. L. T. Cenas de aquisição da
escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas: Associação de
Leitura do Brasil/ Mercado de Letras, 1997a.
______.
Em busca de pistas. Em: ABAURRE, M. B. M.; FIAD, R. S. e MAYRINK-SABINSON, M. L.
T. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto.
Campinas: Associação de Leitura do Brasil/Mercado de Letras, 1997b, pp. 13-36.
ALVES,
R. Filosofia da ciência – introdução ao jogo e suas regras. São
Paulo: Loyola, 2000.
ANDRÉ,
M. E. D. A. A abordagem etnográfica: uma nova perspectiva na avaliação
educacional. Em: Tecnologia educacional, no 24, set.-out.,
1978, pp. 09-12.
______.
A pesquisa no cotidiano escolar. Em: FAZENDA, I. (org.). Metodologia da
pesquisa educacional. 6.ed., São Paulo: Cortez, 2000, pp. 35-45.
______.
Texto, contexto e significados: algumas questões na análise de dados
qualitativos. Em: Cadernos de pesquisa, no 45, mai., 1983, pp.
66-71.
CAVALCANTI,
M. C. e MOITA LOPES. L. P. Implementação de pesquisa na sala de aula de línguas
no contexto brasileiro. Em: Trabalhos em lingüística aplicada, no
17, jan.-jun., 1991, pp. 133-144.
CERTEAU,
M. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995.
______.
A invenção do cotidiano. 4.ed., Petrópolis: Vozes, 1999, vol. 1 –
Artes de fazer.
CRUZ
NETO, O. O trabalho de campo como descoberta e criação. Em: MINAYO, M. C. S.
(org.). Pesquisa social – teoria, método e criatividade. 18.ed., Petrópolis:
Vozes, 1994, pp. 51-66.
DUARTE,
C. Uma análise de procedimentos de leitura baseada no paradigma indiciário.
Dissertação de Mestrado em Lingüística. Universidade Estadual de
Campinas/Instituto de Estudos da Linguagem, 1998.
FIAD,
R. S. (Re)escrita e estilo. Em: ABAURRE, M. B. M.; FIAD, R. S. e
MAYRINK-SABINSON, M. L. T. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o
trabalho com o texto. Campinas: Associação de Leitura do Brasil/Mercado de
Letras, 1997, pp. 155-173.
GINZBURG,
C. Mitos, emblemas e sinais – morfologia e história. 3.ed., São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GOMES,
R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. Em: MINAYO, M. C. S. (org.). Pesquisa
social – teoria, método e criatividade. 18.ed., Petrópolis: Vozes, 1994,
pp. 67-80.
GONSALVES,
E. P. Escolhendo o percurso metodológico. Em: ______. Conversas sobre iniciação
à pesquisa científica. Campinas:
Alínea, 2001, pp. 61-73.
INDURSKY,
F. A quantificação na análise do discurso: quantidade equivale a qualidade?
Em: D.E.L.T.A. (Documentação e Estudos em Lingüística Teórica e
Aplicada), vol. 06, no 1, 1990, pp. 19-40.
LAVILLE,
C. e DIONNE, J. A construção do saber – manual de metodologia de pesquisa
em ciências humanas. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Porto Alegre: Artmed,
1999.
LÜDKE,
M. e ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas.
São Paulo: EPU, 1986.
LUNA,
S. V. O falso conflito entre tendências metodológicas. Em: FAZENDA, I. (org.).
Metodologia da pesquisa educacional. 6.ed., São Paulo: Cortez, 2000, pp.
21-33.
MARCUSCHI,
L. A. Aspectos da questão metodológica na análise da interação verbal: o continuum
qualitativo-quantitativo. Em: Revista latino-americana de estudos do discurso,
vol. 1, no 1, ago., 2001, pp. 23-42.
MARQUES,
W. O quantitativo e o qualitativo na pesquisa educacional. Em: Avaliação,
ano 2, vol. 2, no 3(5), set., 1997, pp. 19-32.
MASON,
J. Introduction: asking difficult questions about qualitative research. Em: Qualitative
researching, London: Sage Publications, 1997, pp. 01-07.
MINAYO,
M. C. S. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. Em: ______.
(org.). Pesquisa social – teoria, método e criatividade. 18.ed., Petrópolis:
Vozes, 1994, pp. 09-29.
______.
O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7.ed., São
Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 2000.
MONTEIRO,
R. C. A pesquisa qualitativa como opção metodológica. Em: Pro-posições,
no 05, ago., 1991, pp. 27-34.
PIMENTEL,
E. Sujeitos leitores, sujeitos autores – indícios de histórias de
leituras na produção de textos escolares. Dissertação de Mestrado em
Lingüística. Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Estudos da
Linguagem, 1998.
SÁNCHEZ
GAMBOA. S. A dialética na pesquisa em educação: elementos de contexto. Em:
FAZENDA, I. (org.). Metodologia da pesquisa educacional. 6.ed., São
Paulo: Cortez, 2000, pp. 91-115.
______.
Quantidade – qualidade: para além de um dualismo técnico e de uma dicotomia
epistemológica. Em: SÁNCHEZ GAMBOA, S. (org.). Pesquisa educacional:
quantidade – qualidade. 4.ed., São Paulo: Cortez, 2001a, pp. 84-111.
______.
Tendências epistemológicas: dos tecnicismos e outros “ismos” aos
paradigmas científicos. Em: SÁNCHEZ GAMBOA, S. (org.). Pesquisa
educacional: quantidade – qualidade. 4.ed., São Paulo: Cortez, 2001b, pp.
60-83.
SANTOS,
B. S. Um discurso sobre as ciências. 12.ed., Porto: Afrontamento, 2001.
SANTOS
FILHO, J. C. Pesquisa quantitativa versus pesquisa qualitativa: o desafio
paradigmático. Em: SÁNCHEZ GAMBOA, S. (org.). Pesquisa educacional:
quantidade – qualidade. 4.ed., São Paulo: Cortez, 2001, pp. 13-59.
SAUL,
A. M. Avaliação emancipatória – desafio à teoria e à prática de
avaliação e reformulação de currículo. 5.ed., São Paulo: Cortez, 2000.
THIOLLENT,
M. J. M. Aspectos qualitativos da metodologia de pesquisa com objetivos de
descrição, avaliação e reconstrução. Em: Cadernos de pesquisa, no
49, mai., 1984, pp. 45-50.
TRIVIÑOS,
A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa
qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
VIANNA,
H. M. Avaliação educacional – teoria, planejamento, modelos. São
Paulo: Ibrasa, 2000.
[1] Ver também André (1978), que, citando Hymes, argumenta em favor da pesquisa qualitativa na abordagem de questões e respostas não previstas no processo de avaliação.
[2] A expressão designa o relatório elaborado pelo Dr. Henrique Walter Pinotti, chefe da equipe médica que assistiu o presidente Tancredo Neves, e publicado no jornal O Estado de São Paulo de 18 de abril de 1985.
[3] Alves (2000) também lembra que, a despeito de cuidadosos arranjos para que nada de novo apareça, ocasionalmente nos deparamos com fatos inesperados que não podem ser analisados com as receitas teóricas já disponíveis para a comunidade científica.
[4] Aqui houve claramente uma falha de elaboração do teste, que induziu a erro. Os conteúdos concordância nominal e concordância verbal deveriam ter sido tratados conjuntamente na questão.